12/01/09

Nós (e o efeito vidro-espelho)

Sentavas-te na sala.

A moleza com que te aconchegavas no sofá fazia prever que hoje era mais um daqueles dias em que te consideravas cansada. Do trabalho, das tarefas domésticas e até mesmo do cargo genearca que ocupavas.
Ligavas a televisão na ânsia de saber se já tinha começado a tua novela predilecta, mas logo começava o bombardeamento de publicidade, um dos males do século XXI.
Espreitava-te através das janelinhas na porta e sentia vontade de te falar, de resolver de uma vez a discussão que se arrastava há dias. Já não sabia do que havia de me desculpar primeiro, o começo das discussões acabava sempre por ser algo que se esquecia facilmente de tão ilógico que era. No final já discutíamos por outra coisa qualquer, tão ou mais absurda. Cada uma com a sua razão. Cada uma com a sua teima. "Um teimoso não teima sozinho".

Estava tão retirada neste pensamento que quando voltei a mirar a porta já não te conseguia ver. O vidro-espelho, aquele que ocupava as janelinhas da porta, pelo qual te espreitava, desempenhou a sua função e começava então a espelhar-me. "Fotocópia da tua mãe" diziam-me tantas vezes... Erámos de facto iguais. Não só nos traços físicos inegáveis mas também na personalidade. Nas qualidades, nos defeitos. E por isso discutíamos vezes sem conta. Não era fácil para nenhuma de nós ver reflectido no temperamento da outra tudo o que de mau queriamos eliminar de dentro de nós. Claro que há traços que nos distinguem, o difícil era saber qual tinha sido agraciada com os melhores. Estarmos frente-a-frente era como aquele vidro-espelho translúcido, que ora nos mostra reflectidas ora nos deixa ver um bocado além.

Ganho coragem e entro. Ignoras-me como sempre fazes nestes dias azedos. Sento-me e começo a olhar para a televisão. Este era um exercício que fazia muitas vezes. Olhar atentamente para a televisão, como se de facto estivesse a acompanhar o programa, enquanto vou pensando na melhor forma de te abordar. "O que vai ser o jantar?" pergunto tímidamente, achando que foi a melhor das tiradas. "Eu é que sei? Porque não tratas tu disso? Esse vinte e quatro anos só servem para ..." Começo-me a perder no som da discussão. Deixo de te ouvir e entristeço-me no meu silêncio. Raios para os mal-entendidos!! Eu só queria resolver o problema, mas o orgulho fez-me contornar a abordagem, e a minha primeira desencadeou nova discussão. Se ao menos tivesses lido no meu olhar...

Quando recomeço a ouvir-te estavas ainda na descrição de todas as faltas e deformidades do meu carácter. Ou pelo menos das que te lembravas. Mas, com a conhecida dose de mau feitio que me pertence, a tristeza começava a ser transformada em indignação! Não podia ser acusada de tudo aquilo calada! Ía começar a responder-te quando me apercebi do problema da situação: discutíamos por nada em especial e iríamos continuar a discutir até alguêm pôr o orgulho de lado. "Tens razão, mãe. Desculpa. Não penso nas coisas antes de as fazer". Olhas-me com supresa e eu dirijo-me a ti, encaixando-me no teu regaço e cobrindo-te de beijos. Choramos as duas. Um choro silêncioso, reconfortante. "Desculpa-me também, filha." E era com esta frase que, desde que me lembro, acabavam sempre as discussões.

Não sinto que o problema tenha ficado resolvido, não sinto que tenha explicado o que realmente se passa na minha alma. Mas percebo hoje que não era isso que era pretendido. Apesar de sermos ditas iguais, havia uma distância grande entre nós, vivências que não eram partilhadas, experiências de vida diferentes. Eu nunca saberei o que é viver na meninice sem um brinquedo para brincar, ou como é ter uma filha para educar no fim da adolescência. E tu não sabes o que são desilusões de amor, amaste um só homem e casaram, tal e qual "Cinderela dos anos 80". Tu nunca saberás viver a minha adolescência porque não tiveste a tua. Será que isto nos separa? Deixa de facto muita coisa para trás... Coisas que podiamos falar abertamente e não falamos. Coisas que podiamos sentir juntas e não sentimos. Mas deixa-me a certeza de que se fossemos do mesmo ano seríamos as melhores amigas. Assim somos mãe e filha. E não tenho dúvida do que é mais forte.

E com tudo isto, hoje ganhei duas coisas, a descoberta da fórmula secreta de resolver discussões e o direito de fazer o jantar.


Wonderful tonight - Eric Clapton

1 comentário:

Anónimo disse...

Que descrição e que inspiração...

"Mas, com a conhecida dose de mau feitio que me pertence, a tristeza começava a ser transformada em indignação". Só uma pergunta: tens a certeza que não queres mudar a expressão "mau feitio" para "forte personalidade"?